Sobre a caça de primatas em uma comunidade na Amazônia

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Nunca foi tão fácil conseguir carne como fazemos hoje. Se precisamos de alguma proteína, opções não faltam em qualquer cidade, por menor que seja. Entretanto, a realidade é muito diferente em um país de proporções continentais. Historicamente, a caça de subsistência foi determinante para a sobrevivência de diversos povos. No entanto, essa prática foi aos poucos sendo substituída pela criação de rebanhos, que persistem até hoje, mesmo que ecologicamente sejam insustentáveis. Mas essa é uma outra conversa.

A caça de subsistência é uma atividade amplamente difundida em diversas regiões tropicais. No Brasil, muitos animais são alvo de comunidades que vivem nas densas florestas. Entre antas, queixadas e cutias, os macacos também entram no cardápio em muitas regiões, especialmente na floresta amazônica. Ainda não existem muitos estudos que explorem o funcionamento dessa dinâmica, até porque rastrear os eventos é trabalhoso, já que muitas comunidades possuem receio de contribuir com a pesquisa por medo de denúncias.

A Amazônia é o lar de 60% das 156 espécies de primatas sul-americanos. Com uma diversidade que enche os olhos de qualquer naturalista, a floresta é quase uma overdose de primatas. Então, seria estranho se os macacos não entrassem na lista de animais caçados. Um estudo realizado nas comunidades ribeirinhas das Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) de Amaña e Mamirauá registrou 402 eventos de caça de primatas ao longo de 11 anos de monitoramento. A quilômetros de distância das RDS, no extremo oeste do Pará, a história não é muito diferente.

Ao longo do rio Trombetas, no município de Oriximiná, comunidades quilombolas que povoam as margens também têm diversas espécies de macacos como prato principal. Ao andar pela mata, as árvores chacoalham de diferentes maneiras; é possível saber qual espécie é apenas pelo som do galho quando o animal pula. E é assim que os ribeirinhos identificam o alvo. Alguns primatas na região podem chegar até 7 kg, como é o caso da Guariba – Alouatta maconelli, diferente dos saguis – Saguinus martinsi, que vivem bem com suas 500g.

Mas com tantos animais maiores na floresta, por que os macacos? “É uma questão de preferência, tem muita gente que acha ruim, mas é um bicho fácil de matar, dependendo do tipo”, responde Jadson, um dos ribeirinhos que vivem às margens da comunidade do Água Fria, na margem direita do rio Trombetas. Em conversa, ele diz que a maioria das espécies que vivem na região são caçadas, desde guaribas e cuxiús até macacos-prego e saguis.

Entre os mais caçados estão os guaribas, por serem animais com pouca atividade, sendo facilmente rastreados. “Eles são mais devagar, se você atira em um, eles correm e se juntam em uma árvore só, às vezes dá para matar o grupo inteiro,” conta o ribeirinho. “Mas se der, a gente pega só o capelão, que dá mais carne,” explica ele se a caça a primatas realmente vale a pena, podendo um macho adulto render até dois dias de refeição para uma família.

Alouatta maconelli na FLONA de Saracá-Taquera, Carlito Junior

Mas, como conta a história, a caça frequente de grandes mamíferos leva ao seu desaparecimento. É comum ouvirmos falar que quanto maior o mamífero, normalmente maior é o tempo entre gestações, já que o investimento no cuidado parental é um fator determinante na história de vida, e não é diferente com os primatas. O tempo entre a gestação de um guariba (Alouatta) pode durar até 22 meses, o que nos faz questionar se realmente é viável, já que a história de vida necessariamente limita o número de macacos adultos disponíveis para consumo.

Uma pesquisa publicada em 2013 na Neotropical Primates, aventou para os efeitos ecológicos da preferência por carne de macacos.  Como normalmente as espécies maiores são mais visadas e mais fáceis de serem abatidas, por conta da relação entre peso do animal e o esforço para encontrar, os macacos menores acabam escapando da panela. O estudo apresentou observações de que o crescimento populacional de saguis e micos disparou à medida que macacos maiores eram caçados.

O efeito ainda não pode ser observado nas comunidades do rio Trombetas, porém, com o crescente avanço do desmatamento na região pela mineração e o adensamento das comunidades, os primatas enfrentam um cabo de guerra pela floresta. A chegada de novas tecnologias também é um fator determinante para o número de caçadas bem-sucedidas. “Quando a gente atira em um, rapidinho carrega e mata outro,” o acesso a armas de fogo nas comunidades facilitou a vida dos ribeirinhos e dificultou a dos macacos.

De acordo com a legislação brasileira, a Lei de Crimes Ambientais – 9605/98 em seu artigo 37 inciso I aponta não ser crime o abate de um animal, quando realizado “em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família”. No entanto, a fragilidade da nossa constituição e dos órgãos de fiscalização, os efeitos da caça ainda são pouco discutidos.

Paradoxalmente, ainda que os efeitos da caça sejam nocivos a longo prazo, as regiões onde se mantêm os costumes tradicionais por lei dentro de Unidades de Conservação são os lugares que mais protegem os primatas no mundo. No Brasil, o direito à caça é concedido aos povos originários, em respeito à sua identidade, sua cultura e às suas necessidades alimentares, desde que tenham seu território reconhecido e homologado. Publicado em 2022, um estudo revela que as espécies de primatas encontradas em terras indígenas enfrentam significativamente menos ameaças à sua sobrevivência geral em comparação com espécies encontradas em terras não indígenas.

Assegurar a estabilidade das comunidades tradicionais é dar uma chance para a maioria das primatas neotropicais de se recuperar. A importância de trabalhos de educação ambiental e de projetos de conservação que dialoguem são indispensáveis. A solução pode estar muito mais perto do que imaginamos; os povos conviveram centenas de anos com os primatas e podem conviver muito mais com o apoio necessário.

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