Na sombra da Megafauna: Os escombros das extinções do Holoceno

thumb

Acompanhamos hoje a iminência do desaparecimento de centenas de espécies. Assistimos, estarrecidos, à erosão de nossa biodiversidade bem diante de nossos olhos, mas este é um processo que tem se intensificado há pelo menos 500 anos. O extermínio de bisões no oeste da América do Norte no século XIX é um exemplo importante da perda catastrófica de espécies.

Haunting Photos of the Bison Extermination in 19th Century America - Rare  Historical Photos

A fotografia mais famosa do extermínio de bisões é uma imagem de uma montanha de crânios. Foi tirada na Michigan Carbon Works em Rougeville, Michigan, em 1892. No final do século XVIII, havia entre 30 e 60 milhões de bisões no continente. No momento desta fotografia, essa população estava reduzida a apenas 456 bisões selvagens.

Além de ser parte do processo colonial, o extermínio dos bisões nas pradarias foi parte do processo de extermínio dos povos indígenas da América do Norte, que já coexistiam e dependiam desses animais para sobreviver. O monte de crânios também indica a abundância de vida dos bisões. No entanto, como era a vida nas pradarias antes do extermínio dos bisões? Como se deram esses processos contínuos de extinção que já ocorrem em uma certa escala há mais ou menos 11.700 anos – marco do fim do Pleistoceno e início do Holoceno.

O Holoceno: o mundo que gostaríamos de ter conhecido

Mas o que foi o Holoceno? Quando criança, minha família realizava longas viagens de São Paulo até a Bahia para visitar a família do meu pai. Atravessava longas paisagens de mares de morros e savanas, imaginando que eu estava viajando para uma terra selvagem. Mas não muito tempo atrás, esse era realmente uma terra de animais que mexem com a imaginação de qualquer criança.  

Naquela época, os interiores do Brasil eram dominados por uma fauna diferente da existente hoje, e que hoje conheceríamos apenas pelo registro fóssil. Diferente do Pleistoceno – época que antecede o Holoceno, os eventos que ocorreram nos último 11 mil anos, se desenrolaram em um palco de relativa estabilidade climática e nas condições ambientais ‘modernas’ que experenciamos ainda hoje. O Holoceno foi um tubo de ensaio do que viria a ser a primeira vez na história do planeta, onde o destino de várias espécies lidaria com um frágil primata, que não tinha nada além da sua incrível capacidade cognitiva e social.

A falta de registros paleontológicos para contar a história, dificulta nossa compreensão atual da velocidade e amplitude da onda de extinção impulsionada pelo ser humano no Holoceno, e permanece incerto se a maioria dos eventos pré-históricos do Holoceno ocorreu como resultado de superexploração direta, fatores indiretos como destruição de habitat através de queimadas, fragmentação da paisagem, sobrecarga de predação, cascata de espécies-chave ou doenças.

Você está na península do Balcãs, os ventos atravessam as montanhas e fazem os capins dançarem ritmicamente, você caminha onde o último período quente interglacial – há mais ou menos 20 mil anos atrás, abandonou rastros de uma megafauna que havia aproveitado da retração das geleiras para dominar as pastagens. Enormes elefantes europeus, conhecidos como Palaeoxodon antiquus, caminhavam junto a hipopótamos e rinocerontes, desaparecendo durante a última era do gelo, abrindo as estepes e tundras para espécies mais adaptadas, sequentemente essas espécies também desapareceram não muito tempo depois. Diferentes populações de espécies de megafauna se extinguiram em momentos diferentes ao redor do mundo. 

Enquanto o mamute-lanoso (Mammuthus primigenius) desapareceu em grande parte de sua área de distribuição por volta de 12.000 anos, eles persistiriam por mais tempo como populações anãs nas ilhas dos mares do Ártico e Bering. Os últimos registros do enorme cervo (Megaloceros giganteus) Holoceno adentro, se deu nas colinas orientais dos Urais da Sibéria até cerca de 6900 anos. A sobrevivência do Megaloceros nesta região pode refletir as exigências ecológicas impostas por seus enormes chifres de 3,5 metros de largura. Por esta região ter sido coberta de florestas com salgueiros e bétulas, os animais tinham um suprimento de cálcio e fósforo suficientes para o crescimento anual dos enormes chifres dos machos.

Enquanto a Europa e Ásia vinham experimentando extinções de diversas espécies, a América do Norte e Austrália tiveram poucas espécies extinção durante o Holoceno, antes da era moderna. Na Austrália, por exemplo, as únicas extinções registradas de mamíferos e aves pré-históricas do Holoceno são das populações continentais do tigre-da-Tasmânia (Thylacinus cynocephalus), do diabo-da-Tasmânia (Sarcophilus harrisii) e da Gallinula mortierii. Espécies essas que hoje são encontradas apenas na Tasmânia – uma ilha na costa sul da Austrália.

As extinções do Holoceno foram significativamente menos severas na África e no sudeste da Ásia, e essas duas regiões biogeográficas ainda retêm uma grande diversidade de espécies de mamíferos de grande porte, como elefantes, girafas, rinocerontes, antílopes e felinos. No entanto, as extinções tiveram uma proporção maior na América do Sul, onde boa parte da megafauna desapareceu – como preguiças gigantes, elefantes, dentes de sabre e tatus do tamanho de um fusca.

As faunas insulares têm experimentado eventos de extinção em grande escala mais frequentes que as continentais, ao longo dos últimos milhares de anos e até o período histórico, como resultado direto da colonização da maioria das principais ilhas oceânicas por navegadores e colonizadores pré-históricos durante este intervalo. Essas ilhas possuem faunas sensíveis a mudanças e endêmicas.

Os animais que viviam nessas ilhas antes dos humanos, hoje estão extintos, exceto pelas tartarugas gigantes das Ilhas Galápagos e Aldabra. Muitas outras espécies que desapareceram nas ilhas, sobreviveram nos continentes mais próximos.  Um exemplo disso é o grande arquipélago intercontinental do mediterrâneo, a região foi um laboratório da seleção natural para centenas de espécies. 

Registros sugerem que alguns elefantes anões também podem ter sobrevivido por milênios além da colonização humana do Mediterrâneo e até a Idade do Bronze no mar Egeu. Um antigo friso de uma tumba faraônica da XVIII Dinastia (cerca de 1475-1445 a.C.), retratam o que seria um elefante adulto anão, uma espécie tardia sobrevivente do Mediterrâneo de Elephas.

Foto de Rosen (1994); reprinted by permission from Macmillan Publishers Ltd: Nature 369: 364, ©1994.

As extinções continuam se alastrando pelo Caribe, onde o complexo de ilhas foi palco de linhagens extintas de preguiças, roedores primatas, como a Megalocnus rodens, uma preguiça gigante que viveu em Cuba. A chegada humana em Madagascar está associada à extinção de toda a megafauna da ilha, que incluía os gigantescos pássaros-elefantes (Aepyornis), três espécies de hipopótamos pigmeus (Hippopotamus), uma fossa do tamanho de um leopardo (Cryptoprocta) e pelo menos 17 espécies de lêmures pesando menos de 10 kg até 200 kg para o gigante Archaeoindris, compreendendo aproximadamente um terço das espécies de lêmures da ilha.

(Foto de @SerpenIllus)

No total, mais de 500 espécies de aves e 250 espécies de mamíferos são atualmente suspeitas de terem se extinguido durante o Holoceno. As únicas espécies com taxas reprodutivas lentas a sobreviver aos eventos do Holoceno, foram arbóreas, noturnas e habitavam lugares remotos, fatores que teriam reduzido sua exposição à interação direta com os humanos A maioria dessas extinções se deram a embates ecológicos entre humanos/megafauna/clima. Foi somente no último milênio que a perda de fauna sistêmica tem sido impulsionada diretamente por atividades humanas.  

A sexta extinção: o último milênio

Quando europeus se espalharam aos quatro cantos do mundo em nome da exploração, comércio e colonialismo, esse processo foi acompanhado de um impacto profundo na diversidade de vertebrados no mundo todo. Continentes e ilhas foram profundamente exploradas. E então os processos de extinção tomaram uma outra faceta – se tornaram sistêmicos. A disseminação da exploração e o crescente interesse no mundo natural durante os séculos XV ao XVIII forneceram inventários taxonômicos detalhados e distribuições históricas de espécies, mas com isso a caça e a introdução de espécies invasoras, decidiram o destino da maioria das faunas insulares – como a história do Dodô.

As Montanhas Atlas, uma cordilheira que se ergue a sul do estreito de Gibraltar, no continente africano, era povoada por uma espécie de leão que foi extinta na região devido a caça excessiva. O leão-do-atlas desapareceu na década de 1950, em parte por culpa do desmatamento causado pela guerra da Argélia, mas que já vinha sofrendo quedas populacionais desde a época do império romano, como relatado por David Quammen, em “Monstros de Deus”.

Durante o Congo Belga do século XIX – por exemplo, além de ser palco do maior genocídio já perpetrado em nome do capital, as perdas ambientais foram avassaladoras, grandes mamíferos foram varridos da região. A caça de elefantes, rinocerontes e outros grandes felinos reduziram drasticamente as populações. A extirpação da biodiversidade através da colonização é uma demonstração de poderio da metrópole. 

No último milênio a caça não tinha mais como função de alimentar populações – embora ela ainda aconteça em menor escala, a caça agora tinha o objetivo de subjugar as terras invadidas. Somente nos últimos anos foi dada a devida atenção e em como a perda de biodiversidade pode afetar ecossistemas inteiros, inclusive efeitos sobre a mudança climática. 

E assim como a história dos bisões nas planícies do oeste, paisagens inteiras foram alteradas devido a imensa perda de grandes vertebrados. Hoje existem pouco mais de 30 mil bisões selvagens vivendo em vida livre. Os animais restantes são descendentes das poucas centenas de bisões que sobreviveram ao extermínio do século XIX. Se não voltarmos nossos esforços para reintrodução e conservação da biodiversidade, em breve não haverá fotos o suficiente que nos façam lembrar dos animais que perderemos. 

Ajude o nosso canal

Faça uma doação pix de qualquer valor. No app do seu banco, aponte a câmera para o QR Code ao lado e nos ajude a continuar a produzir mais conteúdos sobre Paleontologia.

Conteúdos relacionados

Depois de nós: A zoologia do futuro

A obra de evolução especulativa “Depois do homem: A zoologia do futuro” de Dougal Dixon vem inspirando a imaginação humana há mais de 40 anos.

Explorando a história da natureza e a natureza da história através da junção entre a arte, ciência e ficção científica

2023 todos os direitos reservados

plugins premium WordPress