Desde que saímos do continente africano e nos espalhamos pelo mundo, a espécie humana não parou de se movimentar. Assim como nós, milhares de espécies ao redor do mundo também precisam atravessar distâncias continentais, seja para se reproduzir, fugir dos extremos climáticos ou encontrar um novo lar. As migrações são um dos maiores espetáculos que a Terra pode proporcionar, desde milhares de gafanhotos que devoram plantações até gansos que cruzam oceanos.
As migrações não são apenas importantes para as espécies, mas fazem parte da dinâmica de diversos ecossistemas. Acompanhamos esses eventos através de séries de vida selvagem, como se fossem experiências cinematográficas, que parecem acontecer em outro planeta, se não o nosso. O mundo sempre esteve em movimento, e sua saúde depende da liberdade dos organismos de se movimentarem livremente por ele.
Para entendermos a dinâmica desses movimentos, precisamos compreender por que isso acontece. Durante o movimento de rotação da Terra em volta do sol, ela apresenta uma inclinação de 23,5° em relação ao seu eixo, o que resulta em uma maior influência da incidência de raios solares em um dos hemisférios. Essa inclinação é responsável pelas estações do ano que conhecemos: primavera, verão, outono e inverno.
Durante o solstício de verão, quando o hemisfério correspondente está inclinado em direção ao Sol, ele recebe mais luz solar direta, proporcionando dias mais longos, temperaturas mais altas e um clima geralmente mais quente. Por outro lado, no solstício de inverno, o hemisfério está inclinado afastado do Sol, resultando em dias mais curtos, temperaturas mais frias e condições climáticas mais severas.
Os impactos direto dessa sazonalidade não se limita apenas ao clima. Ela rege padrões de floração, migração de centenas de espécie e disponibilidade de alimentos. A sazonalidade orienta e regula ciclos de reprodução de plantas e animais, incentivando estratégias de adaptação e evolução ao longo de milhões de anos. As condições ecológicas desempenham um papel importante na migração dos mamíferos, que reagem à escassez geral de alimentos deslocando-se para outra região. As baleias, por exemplo, deixam a região Antártica à medida que o inverno modifica as condições oceanográficas. As focas dispersam-se quando o abastecimento de alimentos nas suas colônias de reprodução se esgota.
Espécies podem atravessar centenas de quilômetros em busca das condições que permitam sua sobrevivência. No sudeste asiático, milhares de porcos asiáticos atravessam 600 km em busca das frutas sazonais. O planalto tibetano se torna palco de uma travessia de mil fêmeas de antílopes chiru. No Sudão do Sul, por mais de 1.500 km, antílopes de orelhas brancas enfrentam o calor escaldante para alcançar campos de gramas verdejantes.
Antigamente, os Bisões migravam todos os anos pelas Grandes Planícies. Rebanhos de até 4 milhões de animais moviam-se de norte a sul no outono e retornavam quando as chuvas de primavera traziam grama fresca para a parte norte de sua área de distribuição. Mas é no Serengeti onde a maior migração de grandes mamíferos ocorre: zebras, antílopes e mais de um milhão de gnus viajam 3 mil km todos os anos, acompanhando as chuvas.
Esses exemplos mostram como as migrações são adaptativas e vitais para muitas espécies, permitindo-lhes encontrar recursos sazonais, escapar de condições climáticas extremas e garantir a continuidade de suas populações.
O caos contínuo da grande migração ao longo do ano é conhecido como o maior espetáculo de vida selvagem do planeta. Presenciar cenas de milhões de gnus e zebras movendo-se pelas planícies abertas de Masai Mara e Serengeti, cruzando o poderoso rio Mara, é verdadeiramente impressionante. Esses animais seguem as chuvas que caem sobre o ecossistema do Serengeti, que se estende da Tanzânia até o Quênia, incluindo o Masai Mara, e revitalizam a terra.
Com as chuvas, as planícies aparentemente infinitas se transformam em um mar verde, à medida que as plantas recuperam o espaço perdido para a seca. Essas gramíneas mais curtas são ricas em proteína, sódio, cálcio e fósforo, oferecendo aos rebanhos de gnus algumas das melhores pastagens do continente africano. O fósforo é crucial para todas as formas de vida, especialmente para as fêmeas de gnus durante a lactação. Assim, durante a estação chuvosa, os gnus selecionam áreas de pastagem com altos níveis de fósforo.
O Serengeti é um ecossistema vasto que se estende das planícies de Ndutu e das encostas mais baixas ao norte das terras altas da cratera de Ngorongoro. Ele se estende para o norte, atravessando a fronteira da Tanzânia até o Quênia, alcançando a extremidade norte da Reserva Nacional Masai Mara e se espalhando pelas áreas de conservação circundantes.
O início da migração é marcado pela chegada de cerca de 400 mil filhotes em um período de 2 a 3 semanas. Durante os meses de dezembro e fevereiro, testemunhamos as chuvas erguerem quilômetros de grama fresca, acompanhada do nascimento de milhares de bezerros. Com a abundância de gnus, zebras e outros ungulados dando à luz, o espetáculo atrai uma concentração significativa de predadores. À medida que março ou abril se aproximam, o rebanho pode começar a se movimentar em busca de pastagens mais verdes.
Poucos meses após os nascimentos, que agora estão fortes e em boa forma, o movimento começa. Acionados pelas chuvas que avançam, os rebanhos começam a se deslocar para noroeste. Esse movimento os leva em direção às áreas onde a grama estará mais fresca, atraindo milhares de zebras e grupos menores de antílopes. Colunas de gnus se estendem por vários quilômetros enquanto os animais começam a se reunir perto do Moru Kopjes em maio.
No final de junho e passando para julho, os rebanhos continuam em direção ao norte ao longo da extremidade ocidental do parque, em direção ao seu maior desafio, o rio Mara, no norte do Serengeti. Essa travessia é sem dúvida um dos eventos de vida selvagem mais emocionantes da Terra. Assistimos com tensão aos crocodilos famintos e torcemos para que os gentis herbívoros consigam atravessar as correntezas do rio.
O ecossistema do Serengueti é drenado por três rios, o Mbalageti, o Grumeti e o Mara, todos fluindo para oeste até ao Lago Vitória. No entanto, apenas o rio Mara é perene e fornece água potável à vida selvagem durante a seca. Nasce nas colinas do Quênia Ocidental, onde suas nascentes alimentam o rio principal que corre por mais de 390 quilômetros através do Quênia e da Tanzânia antes de desaguar no Lago Vitória – o maior lago de água doce da África e o segundo maior do mundo em área de superfície.
Como resultado da intensa erosão das rochas vulcânicas que margeiam seu percurso, o Mara é conhecido por suas águas turvas e violentas. É um rio traiçoeiro, onde as águas lutam contras as pedras nos trechos mais perigosos. Lar de grandes carnívoros aquáticos, como crocodilos e hipopótamos, bem como de outros carniceiros como hienas e cegonhas. Leões e leopardos que vivem próximos as margens, esperam o ano todo por essa travessia.
Os enormes rebanhos se aglomeram às margens do rio, e à medida que começam a travessia, o Mara se agita. A correnteza forte empurra os animais mais fracos e os draga para o assoalho. Celebramos com os animais que conseguiram atravessar e seguem sua jornada, mas durante a travessia, milhares de carcaças são abandonadas. Incapazes de subir margens íngremes, muitos animais morrem afogados em pânico ou são abatidos por crocodilos. As centenas de mortes que marcam a travessia, não são em vão, já que liberam um pulso de nutrientes que alimenta o rio. As carcaças frescas, que se acumulam nas curvas e nos baixios, alimentam os crocodilos e fornecem até 50% da dieta dos peixes locais.
À medida que se decompõem, essas carcaças adicionam anualmente cerca de 13 toneladas de fósforo, 25 toneladas de nitrogênio e 107 toneladas de carbono ao ecossistema, em pulsos que duram cerca de um mês cada. Durante essas semanas, os níveis de nutrientes podem temporariamente quadruplicar. A cegonha-marabu e os abutres alimentam-se imediatamente da carne dos gnus, transportando os nutrientes dos gnus afogados de volta à terra a quilômetros de distância das margens do rio.
Os ossos, que constituem metade da biomassa, são os últimos a decair, demorando até 7 anos, sustentando uma película de micróbios que, por sua vez, se transforma em alimento para peixes e outros habitantes dos rios. Grandes quantidades de carcaças desempenham um papel crucial nos ecossistemas, semelhante ao fornecimento de alimento por baleias mortas para os fundos oceânicos carentes de nutrientes, permitindo que ecossistemas especializados floresçam nas carcaças em decomposição.
As migrações sempre fizeram parte da história dos ecossistemas, seja no passado ou no presente. Bisões na América do Norte, Saigas na Ásia Central e muitos caribus no Ártico migraram aos milhões, sustentando ecossistemas nos rios que atravessaram. Quando as migrações diminuíram, os organismos que dependiam das carcaças dos animais mortos podem ter diminuído ou desaparecido. Entender como as dinâmicas atuais funcionam nos dá um vislumbre de como o desaparecimento de grandes rebanhos impactou ecossistemas no passado e pode impactar os ecossistemas no futuro.
Migrações em risco
Embora a Grande Migração seja a mais famosa do mundo, há uma segunda migração de ungulados igualmente importante, mas menos conhecida, no ecossistema da Grande Mara – a migração Mara-Loita. Infelizmente, em contraste com a Grande Migração, que viu o número de animais se estabilizar ao longo das últimas décadas, a migração Mara-Loita está em rápida queda.
O grande declínio da migração Mara-Loita começou na década de 1970, quando o governo do Quênia aprovou e financiou plantações de trigo no condado de Narok. O governo promoveu a construção de fossos e cercas para controle da caça para proteger as plantações de trigo e aprovou o abate de gnus, juntamente com outros animais, para maximizar os lucros dos agricultores.
Nos últimos anos, houve um aumento significativo nos assentamentos dentro e ao redor das Planícies de Loita. Essa crescente população está forçando os Maasai locais a abandonar seus modos tradicionais nômades e buscar locais permanentes para manter seu gado. Devido a políticas deficientes de privatização de terras, essa mudança vem acompanhada de um senso de posse, e cercas são rapidamente erguidas para excluir o acesso a recursos por outros.
As grandes migrações de mamíferos estão entre os fenômenos naturais mais impressionantes do mundo. Infelizmente, muitos desses espetáculos mais incríveis estão sob ameaça. A perda de habitat devido à agricultura, a caça ilegal e as barreiras que bloqueiam a migração, incluindo cercas, estradas e ferrovias, têm progressivamente perturbado rotas migratórias históricas e levado a declínios massivos de muitos dos rebanhos migratórios espetaculares que existiam antes.
Mapear as rotas migratórias e identificar onde estão as barreiras que impedem o fluxo natural é o próximo passo para restaurar a movimentação tradicional. A conservação dessas espécies só será possível com o apoio e envolvimento ativo das comunidades locais, que podem fornecer o conhecimento prévio para desenvolver novos horizontes para o uso da terra e promover ações que auxiliem na conservação, permitindo com que continuemos assistindo todos os anos esses enormes espetáculos da vida selvagem.
Para muitos animais, o instinto de se mover é esmagador. Mas, para cada viagem que termina em tragédia, milhões de animais chegam aos seus destinos. Isso possibilita que eles desfrutem de melhores condições e novas oportunidades. Sabemos que nós mudamos o planeta. Mas ao mesmo tempo que apagamos rotas ancestrais nós nunca tivemos tanto conhecimento sobre essas jornadas como hoje. E alinhados com o conhecimento científico e apoio das comunidades tradicionais, podemos devolver a liberdade de se mover para a centenas de espécies que estão sempre viajando.