Eu cresci ouvindo histórias de criaturas fantásticas que habitavam as florestas em todo o Brasil. Nos sertões do Sudeste, os lobisomens, sacis e mulas com cabeças em chamas caminhavam pelas matas e estradas dos interiores. Essas histórias sempre fizeram parte do meu imaginário e ainda reverberam quando me sento em uma roda de conversa. Não nego que algumas ainda me dão arrepios na espinha, mas sempre estiveram muito próximas de mim.
O tempo foi passando e essas histórias se tornaram apenas isso, histórias, algo que não se encaixava mais nas florestas do lado de fora da minha janela. Como eu poderia imaginar a interação de um lobisomem com a fauna? No entanto, algumas histórias ainda não faziam sentido. Lembro até hoje de ouvir contos vindos do Norte, botos que se transformavam em homens e caminhavam entre eles. Mas aí estava a questão, os botos realmente nadavam por aqueles rios, e isso sempre mexeu com a minha imaginação
Ainda não consigo me acostumar com a sensação de ver um boto emergindo para respirar na imensidão que os rios amazônicos proporcionam. Era um sábado, final de janeiro, e as chuvas já haviam começado a saciar a sede do Rio Trombetas. A grama que cresceu o verão inteiro estava se desprendendo, formando imensos bolsões de vegetação flutuante que dificultavam a viagem rio acima. Foi em cima de uma rabeta que vi pela primeira vez um grupo inteiro de botos subir para respirar e depois sumir nas águas.
É sempre um sentimento tentar entender o que um golfinho está fazendo tão longe do mar. Eles sempre estiveram aqui? Como é a relação das pessoas com um animal tão misterioso nos rios?
Foto: Marcos armed
Primeiro, precisamos saber que golfinhos de água doce não são uma exclusividade da bacia amazônica. Espécies de cetáceos que invadiram os continentes nadam também no Orinoco, na América do Sul, e na Ásia são amplamente avistados no Rio Ganges, Indo, Brahmaputra no subcontinente indiano e Yangtze, na China. Até hoje, a teoria mais aceita é que esses animais se aproveitaram do aumento do nível do mar durante o Mioceno, e as áreas de estuários formaram habitats que favoreceram a adaptação desses animais de água salgada para a água doce.
Conforme os mares foram voltando ao nível normal, esses golfinhos acabaram presos nos sistemas fluviais dessas regiões. E o resto é história. As espécies se diversificaram e dominaram os rios dessas bacias continentais, espécies enormes como a recém-descoberta do extinto Pebanista yacuruna, um boto que nadou por águas peruanas há 16 milhões de anos atrás.
Atualmente, todas as espécies de golfinhos de água doce correm perigo de extinção. Na bacia amazônica, as espécies dividem as águas com diversas ocupações humanas, colocando-os assim, em conflitos constantes com pescadores. O emaranhamento em redes de pesca é apontado como a principal fonte de conflito e um fator crucial para o declínio populacional tanto do boto (Inia geoffrensis) quanto do tucuxi (Sotalia fluviatilis). Estudos realizados na China, onde o golfinho do rio Yangtze (Litopes vexillifer) teve 40% de suas mortes causadas por redes de pesca, são um indicativo do quão letal essa prática pode ser.
Botos são predadores de topo de cadeia e indicadores da saúde dos ecossistemas, o aumento das atividades humanas nas margens desses rios constitui uma grave ameaça devido ao conflito pelo uso dos recursos hídricos e da pesca, incluindo a mineração ilegal e a captura das espécies.
Além dos conflitos diretos, a fragmentação dos rios devido à construção de barragens hidrelétricas é uma questão crítica. As mudanças climáticas também impulsionam o desaparecimento, como foi o caso do Lago Tefé, onde mais de 100 animais, incluindo botos e tucuxis, foram encontrados mortos.
O desaparecimento de espécies como o boto do rio Yangtze que não é visto a mais de 40 anos, é um lembrete de quão frágil esses ecossistemas podem ser e de quão facilmente espécies fluviais podem desaparecer. Nos lembra que as poucas espécies que existem hoje são os sobreviventes de um grupo que no passado foi diverso.
Hoje eu entendo melhor as histórias que eu ouvia quando criança, mas sei também que esses animais desaparecerão se nada for feito. Perdemos espécies todos os dias, e à medida que nossos rios adoecem o futuro desses animais se torna mais incerto. As narrativas nos lembram de que compartilhamos muito mais do que apenas culturas em relação a esses animais; compartilhamos o planeta.